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No dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas espalhadas por todo o mundo

É pobre e já foi rica. Era mais pobre quando Camões aqui passou primeiro, cheia de livros a cabeça e lendas e muita estúrdia de Lisboa reles. Quando passados nele os Orientes e o amargor dos vis sempre tão ricos, aqui ficou, isto crescera, mas a fortaleza ainda estava em obras, as casas eram poucas, e o terreno passeio descampado ao vento e ao sol desta alavanca mínima, em coral, de onde saltavam para Goa as naus, que dela vinham cheias de pecados e de bagagens ricas e pimentas podres. Como nau nos baixios que aos Sepúlvedas deram no amor corte primeiro à vida, aqui ficou sem nada senão versos. Mas antes dele, como depois dele, aqui passaram todos: almirantes, ladrões e vice-reis, poetas e cobardes, os santos e os heróis, mais a canalha sem nome e sem memória, que serviu de lastro, marujagem, e de carne para os canhões e os peixes, como os outros. Tudo passou aqui ─ Almeidas e Gonzagas, Bocages e Albuquerques, desde o Gama. Naqueles tempos se fazia o espanto desta pequena aldeia citadina de brancos, negros, indianos e cristãos, e muçulmanos, brâmanes, e ateus. Europa e África, o Brasil e as Índias, cruzou-se tudo aqui neste calor tão branco como do forte a cal no pátio, e tão cruzado como a elegância das nervuras simples da capela pequena do baluarte. Jazem aqui em lápides perdidas os nomes todos dessa gente que, como hoje os negros, se chegava às rochas, baixava as calças e largava ao mar a mal-cheirosa escória de estar vivo. Não é de bronze, louros na cabeça, nem no escrever parnasos, que te vejo aqui. Mas num recanto em cócoras marinhas, soltando às ninfas que lambiam rochas o quanto a fome e a glória da epopeia em ti se digeriam. Pendendo para as pedras teu membro se lembrava e estremecia de recordar na brisa as cróias mais as damas, e versos de soneto perpassavam junto de um cheiro a merda lá na sombra, de onde n’alma fervia quanto nem pensavas. Depois, aliviado, tu subias aos baluartes e fitando as águas sonhavas de outra Ilha, a Ilha única, enquanto a mão se te pousava lusa, em franca distracção, no que te era a pátria por ser a ponta da semente dela. E de zarolho não podias ver distâncias separadas: tudo te era uma e nada mais: o Paraíso e as Ilhas, heróis, mulheres, o amor que mais se inventa, e uma grandeza que não há em nada. Pousavas n’água o olhar e te sorrias ─ mas não amargamente, só de alívio, como se te limparas de miséria, e de desgraça e de injustiça e dor de ver que eram tão poucos os melhores, enquanto a caca ia-se na brisa esbelta, igual ao que se esquece e se lançou de nós. Jorge de Sena, Camões dirige-se aos seus Contemporâneos, 1973

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